sábado, 12 de fevereiro de 2011

Á BEIRA DO NAUFRÁGIO


INÉDITO


Em 1945 terminou a segunda guerra mundial. Em princípios do ano seguinte, meu pai resolveu surpreender-nos com uma agradável notícia. Aproveitou o momento de um almoço em que estavam presentes, os meus pais, a minha irmã, mais velha, o meu irmão mais novo e os empregados mais responsáveis que connosco participavam das refeições, para nos dizer: “durante o primeiro semestre vamos embarcar para Lisboa para gozarmos umas férias merecidas e os filhos ficarem em Portugal a estudar”.
Eu e meus irmãos não cabíamos em nós de contentes por, pela primeira vez, irmos conhecer o “puto”, como era conhecido Portugal continental. Assim, depois de um dos meus irmãos mais velhos ter assumido a gerência dos negócios, preparámo-nos para embarcar no navio de carga “S.Tomé” que dispunha de uns poucos camarotes para transporte de passageiros. O navio fundeou na baía do Malembo – próximo do Malongo, onde hoje está instalada a Chevron – companhia exploradora do petróleo -, para carregar toros de madeira com destino a Lisboa.
O nosso embarque foi dificultado pela “calema” ( estado agitado do mar). Fomos para canoas, ao colo de africanos, e dali passámos para um rebocador que nos conduziu ao navio, fundeado a cerca de 600 milhas da costa. A entrada no navio foi feita através da subida da escada que se perfilava junto ao seu costado. Todavia, a escada era permanentemente afastada e atirada contra o costado pela força do mar agitado. Com muita perícia e ajuda lá conseguimos entrar no navio.
O barco recebeu a carga completa dos toros de madeira que encheram os porões e o próprio convés, onde foram arrumados e devidamente amarrados. Ao fim da tarde do segundo dia da sua estada, o navio levantou ferro e fez-se ao alto mar do Atlântico. Com lágrimas nos olhos contemplei pela última vez a minha Terra Natal, perfilando-se ao longe o mastro com a bandeira portuguesa no palácio do Governo e o farol, como a última silhueta visível e, no lado oposto, a Ocidente o magnífico por de sol, com os seus raios vermelhos projectados nas águas prateadas da baía, ainda sem poços de petróleo a arder.
Atravessámos o Equador, com o nosso baptismo tradicional, como iniciados, e a primeira semana decorreu normalmente; o mar apresentava-se calmo, com a companhia dos golfinhos e peixes voadores, além das gaivotas, como que a desejar-nos uma boa viagem.
A manhã do nono dia de viagem nasceu entoldado por nuvens negras e vento norte muito forte. Bruscamente, o mar encapelou e começaram a formar-se ondas bravas que atingiram 30 metros de altura. As vagas rebentavam sucessivamente na proa do navio, sujeitando-o a um mergulhar e levantar da proa à popa. Tudo que estava solto no navio saltou dos lugares e foi atirado, violentamente, contra os móveis e superfícies fixas. Tripulantes e passageiros passaram a estar à mercê do balouçar do navio. Entretanto, a corrente do leme não resistiu à pressão do mar e acabou por partir.
Naquele momento o navio deixou de obedecer à pilotagem e virou a proa para oeste, ficando a receber a arrebentação das vagas no costado de estibordo. Com a ferocidade cada vez mais crescente do mar, com ondas de trinta metros, o navio passou a correr o risco de naufrágio iminente, caso perdesse a estabilidade relativa e virasse para bombordo, afundando-se. Este perigo tornou-se mais evidente, com a perda da maior parte dos toros de madeira arrumados no convés que se desprenderam e se perderam no mar revolto. Começando pelo comandante e passando pelo imediato e toda a tripulação, o pessimismo apoderou-se de todos. Eu e toda a minha família entrámos em pânico e lágrimas de choro. Meu irmão agarrou-se fervorosamente à nossa mãe e disse-lhe: deixa lá mãe, se o barco for ao fundo, nós vamos a pé. Eu implorava ao telegrafista que enviasse por morse um SOS para nos socorrerem. Ele não abandonava o posto e enviou vários SOS para Portugal e para os territórios da costa africana.
O milagre aconteceu. Depois de se resistir aquela situação crítica durante seis dias, lá apareceu a ajuda que procedeu à reparação da avaria do leme. Com o mar mais calmo e o leme reparado, o navio prosseguiu a viagem que passou a decorrer normalmente até ao seu término que decorreu em Lisboa, no 38º dia.
Nunca mais esquecerei a entrada na barra do rio Tejo em Lisboa. Depois do navio receber o piloto e à medida que este conduzia o navio para dentro do porto, resguardando-o dos bancos de areia, eu sentia-me deslumbrado com o quadro panorâmico que se oferecia com o desfilar da margem direita do Tejo. A começar por Cascais, Torre de Belém, Mosteiro dos Jerónimos, a encosta da ajuda e toda a zona ribeirinha até ao cais de desembarque de Alcântara. Tínhamos alguma família à nossa espera que eu conhecia pela primeira vez e dali seguimos para a nossa nova vida em Portugal.

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