quarta-feira, 24 de outubro de 2007

O COMANDANTE


(INÉDITO - REAL)


Decorria o mês de Agosto de 1975. A noite equatorial estava abafada e quente, carregada de maresia e a lua tímida reflectia-se na baía, desafiando as chamas dos poços de petróleo. Os pescadores rumavam nas suas canoas para o largo da baía a fim de iniciarem a sua faina piscatória até ao alvorecer. A passarada já a algum tempo havia recolhido aos seus ninhos escondidos nos recantos dos troncos e nas folhagens das árvores dos quintais. Bandos de morcegos, ao anoitecer, também já tinham cruzado o céu, trocando os eucaliptos africanos, altaneiros, da Avenida Marginal, pela floresta, para se alimentarem durante a noite. Toda a harmonia da quietude da noite foi quebrada por um incidente inesperado. Eu acabara de regressar de Lisboa, onde tinha deixado a minha família para retomar a vida normal em Cabinda. Era a primeira noite em que me preparava para ir dormir a minha casa, uma modesta vivenda de rés-do-chão, de 3 quartos, uma sala ampla, cozinha, casa de banho e uma pequena marquise. Ficava e fica situada na parte alta da cidade, de fronte do “Cine Cabinda”, uma das duas salas de cinema existentes em Cabinda, com sessões diárias nocturnas.

Ao chegar de jeep, junto ao cinema, para entrar no quintal da minha casa, fui interceptado, imprevista e provocatoriamente, por uma brigada de soldados das Fapla – militares do MPLA -, composta por cerca de 5 homens e 2 mulheres armados com pistolas-metralhadoras e granadas de mão. Uma das guerreiras, em voz alta e firme, intimou-me a mostrar-lhe os meus documentos. Como não era portador dos mesmos, impôs-me a saída imediata da viatura, sob a alegação de que tinham por objectivo eliminar os reaccionários que andavam à solta. Defendi-me, esclarecendo que tinha chegado de Portugal e me dirigia a minha casa para pernoitar. Acusaram-me de estar a mentir porque eu havia afixado na parede da minha casa uma foto do líder dum movimento da oposição (recordo que, do confronto bélico entre os três movimentos ditos “libertadores de Angola”, - em que incluíam erradamente Cabinda -, UNITA, FNLA e MPLA, este último saiu vencedor, tendo os restantes passado à clandestinidade).

Naquele momento, achei que não devia perder a calma e precisava de ser imaginativo para sair da situação melindrosa com que me sentia confrontado. Não obstante fosse ameaçado insistentemente para abandonar a viatura a fim de me fazerem um julgamento sumário, acabando comigo, isto na presença passiva de tropas portuguesas que faziam guarda ao cinema (exclusivamente para protecção dos seus camaradas), não levei a sério a concretização dessa ameaça. Eu sabia que aquela atitude fazia parte dum jogo habilidoso, habitualmente utilizado, de pressão e desgaste psicológico, com o propósito de se apossarem da minha casa e da minha viatura. Por este motivo, resolvi participar no jogo, com o meu trunfo. Lembrei-me então de lhes dizer que conhecia um comandante das FAPLA que tinha sido meu colaborador e que ele não iria gostar de saber o que se estava a passar comigo. Ao citar-lhes então esse comandante (cujo nome aqui omito), foi-me de imediato pedido desculpas, porque tinham muito respeito pelo comandante que se batera com valentia nas matas de Cabinda contra as tropas portuguesas. Deixaram-me em liberdade, mas recomendaram-me que, para minha segurança, não devia dormir naquela noite em minha casa.

Fui ficar na casa de um meu irmão e no dia seguinte contactei o meu amigo comandante que pus ao corrente do que se passara na noite anterior. Depois de me escutar atentamente, disse-me que, para o caso ficar encerrado, passaria por se arrancar a fotografia da minha casa e que ele próprio iria fazê-lo. Eu teria, no entanto, de arranjar uma viatura, que não a minha, para o deixar um pouco distante do local. Assim fiz, utilizando o carro dum meu primo. Parei o carro a cerca de 300 metros do local e o meu amigo comandante dirigiu-se a pé a minha casa, donde arrancou a fotografia. Foi buscar um pouco de água a uma torneira existente nas traseiras e depois de limpar bem a parede, voltou ao carro onde fiquei a aguardar. Tranquilizou-me, assegurando-me que, a partir daquele momento, poderia servir-me da minha casa com absoluta a vontade. Tal, porém, não aconteceu exactamente, porque imperava a anarquia nas fileiras revolucionárias e, diariamente, era questionado sobre a minha eventual vinda para Portugal. Não abdicando da minha frieza e percebendo que o objectivo era assustar-me, ia respondendo que, como natural de Cabinda, nunca pensaria abandonar a minha Terra. Estas encenações prolongaram-se até às vésperas da independência, altura que achei oportuna para vir para Portugal.

Recordo com saudade o meu amigo comandante, comparando a sua verdadeira amizade e fidelidade à falta de solidariedade e humanidade de outros personagens que, por motivos profissionais, tive de enfrentar, posteriormente, na minha vida.

1 comentário:

cabindês disse...

Acho o artigo muito bom