quarta-feira, 24 de outubro de 2007

O MEU AMIGO TIBÚRCIO

(INÉDITO - REAL)

Alguém das minhas relações sugeriu-me escrever umas linhas sobre algum facto de interesse geral e que estivesse relacionado com a minha própria vivência em África. Lembrei-me de trazer a lume a memória do paralelismo da minha vida com a do meu amigo Tibúrcio.Trata-se de um africano nascido num povo (aldeia) do interior de Cabinda.

Decorria o ano de 1993, quando senti uma vontade irresistível de revisitar a minha Terra, sabendo, de antemão, que seria algo confrangedor. Todavia, mais que a curiosidade de rever os meus bens materiais, senti algo de sentimental que me impeliu a estar com os meus verdadeiros amigos, companheiros de infância e duma grande parte da minha vida activa. Após dois dias da minha permanência em Cabinda, deslocou-se do seu povo à capital, para me ver, o Tibúrcio. Fez-me, então, um relato pormenorizado da trajectória da sua vida desde há cerca de dezoito anos até ao momento do nosso reencontro e aproveitámos a ocasião única e talvez irrepetível para recordarmos os nossos tempos de meninos.

Contou-me que, tal como eu que vim para Portugal com a minha família em 1975, também ele se viu obrigado, no ano seguinte, a sair de Cabinda e a refugiar-se do outro lado da fronteira, na República do Congo (ex-Congo Belga), devido à vida instável que se vivia então. Rememorámos as décadas de 40 e 50, em que havia relativa abundância de bens de consumo e segurança física de pessoas e bens. Nesse tempo, o comércio ainda era feito no interior mediante a permuta de bens, com uma componente monetária superior à das décadas anteriores. As relações comerciais directas entre os colonos (não colonialistas) e os indígenas realizavam-se através da troca de bens. Por volta das cinco horas de madrugada, tal como outros negociantes, meu pai dirigia-se à sua feitoria (loja filial de comércio de retalho), numa velha camioneta Chevrolet. Transportava bens alimentares e outros, como: sal. feijão, arroz, bagaceira, vinho, panos, missangas, etc. Parte desta mercadoria ficava na feitoria e a restante seguia para os povos para permuta por produtos coloniais, a saber; óleo de palma, coconote, café, cacau, frutas, etc. O percurso de Cabinda para a feitoria era de cerca de 40km. e levava quase a manhã a percorrer, devido à estrada tortuosa e lamacenta. Apenas no dia seguinte, também de madrugada, partia da sua base de apoio para os povos, de molde a permitir que, concluída toda a permuta, regressasse a Cabinda no mesmo dia. Desde fins do século XIX até cerca dos anos 30 do século XX, as feitorias estavam instaladas ao longo do litoral, devido à ausência de estradas para o interior. A ligação com Cabinda fazia-se à beira-mar, pedonalmente, tornando-se cansativa e demorada.

As deslocações ao mato (interior), eram bissemanais, normalmente à segunda e sexta-feira, aproveitando eu os fins de semana para acompanhar meu pai. Era para mim uma alegria imensa porque levava comigo uma bola de trapos para jogar com o meu amigo Tibúrcio. Obsequiava-o também com peixe e pão frescos para ele se deliciar, enquanto eu também matava saudades do peixe salgado cozinhado com molho de gindungo (piri-piri), acompanhado de mandioca (raiz de planta rica em amido). A nossa chegada aos povos era sempre celebrada com manifestações de bastante regozijo, com vivas e gritos de crianças que se vinham juntar a mim para jogarmos à bola e brincarmos ao arco (jante de bicicleta atada por um cordel que a fazia rodar).

O Tibúrcio, tal como outros patrícios Cabindeses, faziam e fazem parte da minha vida, pois cresci, vivi e senti com eles todas as nossas carências e ambições que eram muito limitadas, mercê do poder do Estado indesejável instalado nesse tempo. Perdi o contacto com o meu Amigo Tibúrcio, mas ainda tenho a esperança de vir a reabraçá-lo.Toda esta narrativa reflete o drama de milhões de casos similares de refugiados que, além de perderem os seus amigos e familiares, vêm-se despojados dos seus bens que, com tanto esforço e trabalho, conquistaram.

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