domingo, 19 de junho de 2011

O MEU AMIGO LITO

Postal de África dos anos 40
(PUBLICADO EM 12.12.2008,

NA "CIDADE DE TOMAR")
Década de quarenta do século XX. Cabinda, ilha continental encravada no litoral equatoriano de África Ocidental, território colonizado por Portugal. De pé descalço e bibe manchado de lama, o miúdo abeirou-se da água, aproveitando uma onda da preia-mar para molhar os seus pés e mãos. Para o Lito, (diminutivo de Carlos) meu amigo de peito, era um ritual diário correr para a baía e desfrutar de momentos únicos: o quadro natural que contemplava, de luz e cor, oferecido pelas águas prateadas da baía em contraste com o azul brilhante do céu; o rebentar das ondas na praia, as canoas e os seus pescadores manobrando os remos que as levavam para fora da baía, na faina piscatória habitual; as gaivotas em voos vertiginosos a pique sobre as suas presas submarinas, linguados, malevos e outro peixe miúdo; as jangadas de toros de madeira que se iam formando ao longo da praia para seguirem para os navios ancorados ao largo da baía; o vaivém dos rebocadores, puxando as jangadas para bordo dos navios e trazendo, destes, de retorno, batelões carregados com mercadorias.
Todavia, aquele era um dia muito especial. Havia chegado do “puto” (Portugal – Metrópole), o navio de carga mensal que trazia os mantimentos ansiosamente esperados para suprir as carências que existiam, como: batatas, cebolas, vinho, bacalhau, sardinha, carapau, queijo da serra, hortaliças, etc… Lito tinha sido alertado para a chegada do barco, através dos sinos da Capitania e do Palácio do Governo que, lá do alto das colinas, se faziam ouvir por toda a vila. Era dia de festa, não só para o Lito e os seus amigos, que a ele se juntavam, como para toda a comunidade que se agitava ansiosamente para observar o navio a entrar na baía até fundear a larga distância de terra. Era um acontecimento raro e festivo vivido com fervor por toda a população.
Nesse mesmo dia, os artigos de maior necessidade eram desalfandegados e colocados à venda na meia dúzia de lojas que existiam, prolongando-se por vezes esta prática pela noite dentro. O rancho era melhorado com uma boa posta de bacalhau e um pedaço do belo queijo da serra acompanhado da boa banana macaco, como sobremesa.
Esta era a vida pacífica que Lito assimilou em toda a sua fase de crescimento, em que só conhecia a natureza, a convivência e cumplicidade com os seus amigos - crianças e adultos e os próprios animais, de toda a espécie, incluindo os répteis que faziam parte do seu habitat. Este retrato marca uma época, em que por ausência de espírito consumista e egoísta, imperava a boa convivência, a entreajuda e a satisfação das necessidades primárias, poupando e produzindo.
Hoje, Lito, bisavô e de cabelos brancos, com uma vida preenchida, assiste ao contraste totalmente oposto: na baía erguem-se sobranceiros os imensos poços de petróleo poluidores das águas outrora límpidas; deixou de se sentir o cheiro da lama e da maresia; repeliu-se a fauna para as matas; reduziu-se os bandos de morcegos que, ao pôr-do-sol, sobrevoam a ex-vila - promovida a cidade -, em direcção à floresta, em busca de alimento; raramente se vislumbra uma osga, um camaleão, uma rã, um sapo, uma cobra, uma ave canora; criou-se o sintoma doentio da insegurança permanente. Enfim, outros tempos, outras ambições, outras mentalidades.

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