quarta-feira, 8 de junho de 2011

RETRATO DE UMA ANGOLA NOS ANOS 60



(ARTIGO PUBLICADO EM 05/01/2007,




NA "CIDADE DE TOMAR")




Pela leitura de algumas obras literárias que têm vindo a lume, recentemente, de vários autores (não escritores), mais especificamente, de jornalistas, fica-se com uma ideia cor-de-rosa da vida angolana nos anos 60.
Na verdade, quem nasceu e viveu em Angola, intensamente, uma vida de labor e sacrifício nos 2º e 3º quartéis do século passado, conhece perfeitamente a realidade angolana. Esta não se resumia à vida das principais cidades de Angola, onde imperavam elites que se compartimentavam em núcleos burgueses, usufruindo de verdadeira abastança proveniente das suas vastas propriedades agrícolas e pecuárias e, em casos particulares, da exploração ilícita de diamantes, de marfim e de ouro, com interesses ligados a Portugal Continental.
Outrossim, o verdadeiro motor da economia angolana emanava das actividades de pequena e média dimensão, pertencentes a colonos radicados nos distritos do interior, nas áreas comercial, agrícola e industrial. Desse potencial irradiava a força motriz bastante para gerar o crescimento da economia angolana. Era também nesse grupo de empreendedores que se travava a verdadeira luta pela sobrevivência, em condições precárias, como carência de alimentos, de água potável, canalizada, de energia eléctrica, de estradas asfaltadas, de cuidados de saúde, de apoios financeiros e a inevitabilidade da perseguição política. Eu próprio, sem ter sido político activo, tenho processos nos registos da Pide.
Neste contexto, assumo as minhas afirmações, como protagonista dessa época, ao ter vivido intensamente todo o percurso da minha adolescência e da minha vida activa, enfrentando as condições adversas já atrás mencionadas, no então Enclave de Cabinda. Este distrito, dependente do poder central de Luanda, apesar de ser um Enclave, não tinha qualquer autonomia e, por esta razão, nunca beneficiou do merecido desenvolvimento, à excepção da redução de algumas taxas aduaneiras.
Cabinda era uma terra rejeitada pelos funcionários, por ser considerada de desterro, muito embora, depois de a conhecerem, seduzidos pelo seu feitiço, ficarem com vontade de lá se radicar ou de regressar de seguida. Também a maioria das regiões do interior de Angola sentia as mesmas dificuldades de Cabinda, para se poderem desenvolver, de molde a se colocarem ao lado de cidades privilegiadas, como Luanda, Nova Lisboa, Sá da Bandeira, Moçâmedes, Lobito e Benguela.
Nas minhas muitas deslocações a Luanda, apercebia-me do fosso que separava a sociedade de Cabinda, da de Luanda. Aqui, e nas restantes cidades angolanas, tratava-se as gentes oriundas do interior, como de terceira categoria (dizia-se, “vindas do mato”), pois o Estado já distinguia os naturais dos não naturais, classificando os primeiros como cidadãos de segunda categoria. Mais tarde, tive a confirmação deste facto, quando assentei praça em Nova Lisboa, considerada a 2ª cidade de Angola. Tinha lugar, no ano de 1956, nesta capital de Distrito, o primeiro curso de sargentos milicianos. Os mancebos, chamados a prestar serviço militar nesse ano, eram, na sua generalidade, portadores de boa formação. Porém, isso não obstou a que fossemos descriminados, por sermos simples recrutas e não nos enquadrarmos no tipo de sociedade que imperava então em Nova Lisboa. Chegou-se ao extremo de proibir que os recrutas se sentassem em certos cafés, frequentassem o cinema “Ruacaná”, a determinados dias da semana, e namorassem raparigas da terra. Esta descriminação era extensiva a alguma população residente.
Concluindo: haviam três classes distintas que viviam e conviviam mal entre si, assim constituídas: 1º - os afro-descendentes “não qualificados”, divididos na conquista, a qualquer preço, duma independência exclusivamente africana ou multirracial; 2º - os afro-descendentes “qualificados” e os colonos brancos e seus descendentes, desejando uma independência pacífica e multirracial; 3º - os quadros superiores do Estado, encabeçados pela PIDE, os “bufos”, as figuras públicas e os colonialistas brancos e seus descendentes, defensores intransigentes da manutenção do regime colonial.
Por falta de pluralidade e convergência de ideais e objectivos de toda a população angolana, deu-se uma ruptura na sociedade que contribuiu, em grande medida, para o enfraquecimento da unidade colectiva, e permitiu a descolonização discricionária que o Estado Português protagonizou, sem acautelar os interesses gerais dos seus cidadãos, a quem foram renegados os seus legítimos direitos, em total liberdade. Haverá ainda muita história para revelar, sobre a realidade angolana, que ficará para outra oportunidade.

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