domingo, 12 de junho de 2011

O VAZIO

(PUBLICADO EM 06/04/2007,

NA CIDADE DE TOMAR)


O Sol matutino e radioso erguia-se no firmamento e os seus raios penetravam indiscretamente pelas frestas das persianas naquele quarto. Fernando virou-se na cama para evitar o raio de luz que o atingia, espreguiçou-se e estendeu a mão direita para se certificar de que estava só. Sentiu o lado oposto da cama gelado e a almofada empolada e muda. Fernando voltou a espreguiçar-me, esfregou os olhos, como habitualmente, e concluiu amargamente que lhe restavam naquele momento as paredes, a cama, os objectos e a sua gata siamesa.
A companheira, com quem compartilhou a sua vida durante 49 anos, partira na véspera, para uma outra vida, sem ter feito qualquer aviso prévio. Foi tudo tão inesperado que Fernando continuava aturdido e insensível ao meio que o rodeava naquele momento, que lhe parecia inteiramente estranho. Com bastante sacrifício sentou-se na cama e tentou recuperar a memória dos instantes que precederam aquele desenlace macabro, mas as ideias confundiam-se nos seus neurónios, não lhe permitindo arrumá-las e rememorar os factos passados mais próximos. Talvez esta inibição fosse favorável a não agravar o seu sofrimento por tão dolorosa perda. Sentia ter perdido grande parte de si. Diminuído física e mentalmente, não conseguia coordenar o raciocínio com os seus movimentos. Deixou-se render perante uma evidência tão mutiladora que se sentiu incapaz de dar alguns passos naquele quarto silencioso e inerte.
Fernando fixou então os seus olhos, marejados de lágrimas, no tecto do seu quarto, cúmplice de muitas intimidades ardentemente vividas, e tentou abstrair-se de todos os pensamentos, mas acabou por se deixar embalar por um sono flutuante e de recordações. Vieram-lhe então à memória os bons e maus momentos passados em comum com Maria Beatriz: a sua união conjugal, os filhos, os netos, os amigos, os inimigos e os bons e maus momentos da vida. A construção de todo um património humano e material, restando apenas aquele, pois este foi-lhe extorquido impiedosa e injustamente por usurpadores.
O momento que Fernando vivia parecia-lhe surrealista, qual quadro dantesco, de cores fortes e contornos disformes. A vida, que até então já nada lhe oferecia, acabou por lhe retirar o pouco que lhe sobrava. Nem os seus descendentes lhe davam qualquer alento e ofereciam uma réstia de esperança para poder prosseguir a sua cruzada na busca de algo reparador, inexistente e inacessível. Muito menos poderia usufruir do seu acompanhamento, por viverem distantes e enclausurados nas suas próprias vidas privadas, de circuitos fechados, por imposição das regras rígidas sociais.
Cada dia que passava, Fernando foi-se isolando no seu reduto, entregando-se, paulatina e inspiradamente, à escrita das suas memórias, não com o propósito de alguém as ler, mas apenas porque se sentia realizado e reconfortado com as releituras da sua criação.
Passado pouco tempo, sem mais perspectivas e com o horizonte carregado de nuvens negras, Fernando rendeu-se à evidência das realidades e deixou de sonhar, de pensar, de idealizar, de desejar, de amar, enfim…de ter gosto pela vida, para entrar definitivamente na Eternidade e juntar-se à sua Companheira jamais esquecida.

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